Antes mesmo que os primeiros raios de sol iluminassem a paisagem carioca, às cinco da manhã, o bairro de Quintino, na Zona Norte do Rio de Janeiro, já pulsava com a energia da fé. Um grupo de devotos católicos se reuniu para a tradicional queima de fogos, um rito matutino que oficialmente abre as celebrações dedicadas a São Jorge, um santo tão importante que seu dia é feriado em diversas localidades, incluindo o estado do Rio.
Para os católicos, São Jorge personifica a figura do guerreiro celestial, o protetor dos cavaleiros, soldados, escoteiros, esgrimistas e arqueiros. Carinhosamente chamado de santo guerreiro, ele é invocado como um guia e um escudo contra as adversidades da vida, auxiliando seus fiéis na batalha contra o mal, tanto no plano físico quanto no espiritual. Essa crença encontra eco nas palavras do próprio Vaticano, que, em seu site, ressalta que a figura de São Jorge, mesmo envolta em lendas, perpetua a fundamental ideia de que o bem, inevitavelmente, triunfa sobre o mal, uma luta constante na história da humanidade que se vence com a ajuda divina.
A devoção a São Jorge não se restringe ao catolicismo. Ele também é reconhecido como santo por outras vertentes do cristianismo, como a Igreja Anglicana e a Igreja Ortodoxa. Sua figura guerreira e sua aura de protetor transcendem as fronteiras religiosas, sendo também respeitado e sincretizado em religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé. Para Luiz Antônio Simas, escritor, professor e historiador, autor do livro infantil “O cavaleiro da lua: Cordel para São Jorge”, essa popularidade reside em seu caráter de “santo do cotidiano”, aquele a quem se recorre nos perrengues do dia a dia, assim como Santo Expedito para as causas urgentes. São Jorge é, essencialmente, um “santo da rua”, presente no imaginário popular para resolver problemas imediatos.
Apesar da forte tradição e da vasta iconografia que o retrata, as origens históricas de São Jorge permanecem envoltas em névoa. Documentos que comprovem sua existência de forma incontestável são escassos, e muito do que se sabe foi transmitido oralmente ou através de relatos literários. O Vaticano reconhece essa lacuna histórica, mencionando o surgimento de diversas histórias fantasiosas ao longo do tempo. A narrativa mais difundida situa o nascimento de Jorge por volta de 280 d.C., na Capadócia (atual Turquia), em uma família cristã. Sua trajetória o levou à Palestina, onde ingressou no exército romano sob o comando do imperador Diocleciano. Em 303 d.C., durante as violentas perseguições aos cristãos orquestradas pelo imperador, Jorge teria se posicionado contra ele, sofrendo torturas antes de ser decapitado.
Um dos registros mais antigos que fazem menção a São Jorge é uma inscrição grega datada de 368 d.C., encontrada em Eraclea de Betânia, que se refere à “casa ou igreja dos santos e triunfantes mártires, Jorge e companheiros”. Séculos depois, durante o fervor das Cruzadas (entre os séculos XI e XIII), a mitologia em torno de São Jorge se enriqueceu ainda mais. A lendária batalha contra o dragão que aterrorizava a cidade de Selém, na Líbia, culminando no salvamento da filha do rei, se tornou um dos episódios mais emblemáticos de sua história. Os cruzados, imersos em um contexto de conflito religioso, interpretaram a derrota do dragão como uma alegoria da vitória sobre o Islamismo. Para Luiz Antônio Simas, o dragão personifica a constante presença do mal, do inimigo a ser enfrentado, seja no plano espiritual ou nas dificuldades cotidianas, e a figura de São Jorge, o matador do dragão, ressoa com a necessidade de um herói que triunfa sobre essas adversidades.
Curiosamente, a reverência a São Jorge também encontra espaço no Islã. Alguns estudiosos sugerem que ele poderia ser a figura de Al-Khidr, um personagem venerado no Alcorão. Segundo Luiz Antônio Simas, essa sobreposição de identidades reforça a natureza multifacetada de São Jorge, um “vencedor de demandas” que atrai a devoção em diferentes contextos culturais e religiosos.
Na Inglaterra, o culto a São Jorge ganhou força com a influência normanda, culminando com a instituição da “Ordem dos Cavaleiros de São Jorge” pelo Rei Eduardo III em 1348. Durante a Idade Média, sua bravura e fé inabalável o consagraram como um tema recorrente na literatura épica. Contudo, em 1969, diante da escassez de evidências históricas concretas, o Vaticano reavaliou o status de sua celebração litúrgica, que passou de festa para memória facultativa.
No Brasil, a rica tapeçaria do sincretismo religioso teceu uma forte ligação entre São Jorge e Ogum, o orixá guerreiro das religiões de matriz africana. No entanto, Flávia Pinto, socióloga, escritora e mãe de santo, da Casa do Perdão, pondera sobre essa associação, esclarecendo que, embora haja um diálogo entre as figuras, elas não são a mesma entidade. Para as tradições do candomblé e da umbanda, São Jorge é reconhecido como um “filho pródigo” de Ogum, uma manifestação que surgiu em um contexto histórico e cronológico posterior à existência ancestral do orixá na Nigéria. Flávia Pinto também critica uma visão excessivamente romantizada do sincretismo, lembrando o contexto de violência e imposição cultural da colonização, onde a aceitação de santos católicos era mais “palatável” em um cenário de dominação euro-cristã. No entanto, a sabedoria ancestral dos povos africanos permitiu estudar a história de São Jorge e associá-lo aos seus próprios orixás, demonstrando uma notável capacidade de adaptação e resiliência cultural.
Assim, a celebração de São Jorge no Rio de Janeiro, marcada pela fé fervorosa e pela tradicional queima de fogos em Quintino, é um testemunho da força de um símbolo que atravessa séculos e fronteiras religiosas. Seja como o santo guerreiro católico, o respeitado personagem islâmico ou o sincretizado com o poderoso Ogum, São Jorge continua a inspirar e a proteger seus devotos, reafirmando a eterna crença na vitória do bem sobre o mal.